Filho da Paz

Ao contrário de mim, o meu Pai era uma pessoa bastante reservada. Sendo o seu filho mais velho, habituei-me desde muito pequeno a fazer-lhe companhia aos domingos: nos jogos do Futebol Clube do Porto, em que cada golo nosso valia um abraço bem apertado; nos passeios até ao porto de Leixões, onde, enquanto o odor a limo e maresia nos penetrava as narinas, me mostrava os navios recém-chegados do Brasil e de África, carregados de madeiras exóticas que iriam ser serradas na empresa onde ele era contabilista; enfim, nas idas ao circo e até, cada vez mais à medida que eu ia crescendo, nas matinées de cinema, Arte de que ele gostava particularmente.

Eu escutava-o com grande atenção, e ainda hoje me lembro de muitas coisas que ele me ensinou a ver, a ouvir, a descobrir, a apreciar.

Era muito raro que abordasse temas da sua vida pessoal, ainda que eles se entrelaçassem com a nossa vida familiar. Por isso fiquei surpreendido quando um dia, no meio de uma conversa, me disse de forma enigmática: "Tu és filho da paz". Assim mesmo e só! A minha inocência despreocupada de então ouviu e registou, mas não o questionou sobre o assunto, embora sentisse que havia ali algum mistério...

Poucos anos depois, após a tradicional recepção ao "compasso" num domingo de Páscoa, voltou a intrigar-me, ao convidar-me a provar um pequeno cálice do Vinho do Porto que fora servido aos anunciadores da Ressurreição, acrescentando: "O teu sangue tem um bocadinho de "vinho fino", por isso podes beber um pouco…". Por essa idade, eu jamais ingerira uma gota de álcool e não sabia nada sobre o Vinho do Porto, nem tão pouco porque era chamado de "vinho fino". Mas obedeci, sorvendo aos poucos o que achei ser o verdadeiro néctar dos deuses do Olimpo, cujos nomes começara a aprender na escola. Apesar da pequena quantidade bebida, senti uma estranha euforia que me deixou um pouco confuso, e por isso esqueci-me de pedir ao meu Pai que me explicasse o que tinha o meu sangue a ver com aquele delicioso líquido. Quando, mais tarde, me lembrei disso, não tive coragem para lho perguntar...

Foi só muitos anos depois que aquelas duas frases paternas se vieram atropelar no meu espírito, saídas a correr das gavetas da memória onde tinham ficado arquivadas.

Estava a visitar uma exposição sobre a II Grande Guerra Mundial quando, ao olhar para uma fotografia, tirada em Paris no dia do armistício na Europa, reparei na data: 7 de Maio de 1945. Foi como se um raio de luz me tivesse penetrado subitamente no cérebro, com tal intensidade que cerrei os olhos, aturdido pelo impacto da emocionante descoberta! Quando os abri de novo para confirmar a data, encontrei-a desfocada, a boiar na humidade intensa que entretanto os invadira. De facto, eu nasci em 7 de Fevereiro de 1946, exactamente 9 meses depois do dia do fim da guerra no Velho Continente.

E, de repente, foi como se estivesse de novo a ver um filme com o meu Pai: a ascensão de Hitler; o início da II Grande Guerra; as potências do Eixo; o Holocausto; Pearl Harbour; a Guerra do Pacífico; o dia D; a rendição da Alemanha e a declaração da paz na Europa; a sua comemoração entusiástica por todo o Velho Continente; os meus Pais a associarem-se à festa, elegendo o Vinho do Porto para celebrarem… Quando acabaram os festejos, comecei eu.

Mário Saraiva Pinto